Publicado no Montbläat, abril de 2007
O Centro
Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro,
apresenta até o final
de abril a exposição Impressões Originais:
A Gravura desde
o século XV. Esta amostra
apresenta seiscentos anos de história da gravura
através de duzentos e oitenta obras originais
de artistas como
Dürer, Rembrandt, Goya, Picasso, Warhol, Matisse, Miró, Lichtenstein e gravadores brasileiros
como Goeldi, Grassmann, Scliar, Segall, Iberê
Camargo, Ligia Pape e outros, destacando
movimentos como
o Expressionismo, o Abstracionismo,
a Pop Art e a Nova Figuração. Nesta exposição
podemos ver matrizes e instrumentos
antigos, informações
sobre várias técnicas
como: xilogravura,
litografia, água-tinta, água-forte,
buril, linóleo,
relevo seco
e fotogravura. Há também
um incunábulo, que
é um livro
impresso no século
XV com matrizes
em madeira,
que eram copiados e ilustrados um a um à mão, usando a técnica
de xilogravura.
Foi editado um belo catálogo com mais de cento
e cinquenta páginas com
reproduções de todas as obras expostas, detalhes
sobre as diferentes
técnicas de gravura,
informações sobre
os artistas, movimentos
e períodos históricos.
Ao visitar
esta exposição, alguns
fatos me
chamaram a atenção, como uma falha técnica em uma
das gravuras de Picasso que não era notada
pela maioria
das pessoas. Vivemos em
um mundo
de imagens onde
a comunicação visual
foi ampliada pelas técnicas digitais, mas muitos de nós
continuamos como analfabetos
visuais.
A imagem do ponto
de vista geométrico,
nada mais
é do que uma projeção
de pontos em
um espaço
bi-dimensional, onde cada um corresponde a um
ponto no espaço
tridimensional. A imagem também pode estar ligada a
outras realidades, como
expressões de emoções,
visões artísticas ou
mesmo interpretações
técnico-científicas como, por exemplo, em
exames médicos
e mapas meteorológicos. O fato
concreto é que
a imagem não
é uma cópia da realidade,
mesmo na fotografia,
onde o enquadramento e a iluminação – para
não falarmos nos
retoques digitais – impõem a visão do fotógrafo. Em uma gravura ou pintura esta visão
pode ser muito
mais intensa. Logo, um
cidadão alfabetizado deve não só saber ler e escrever
como ter
uma boa percepção visual,
já que
as técnicas de propaganda
e marketing
constantemente nos
bombardeiam com imagens: vendendo produtos, criando necessidades
ou mesmo
visões políticas.
Esta é uma discussão longa e para quem quiser aprofundar-se, pelo
menos no tocante
a fotografia onde
estou mais familiarizado, sugiro os livros: Sobre Fotografia, de Susan Sontag e O Ato Fotográfico
de Philippe Dubois.
Outro
fato interessante que deve ser lembrado
por ocasião da visita a esta exposição, é que
enquanto os primeiros livros foram impressos
no século XV, através
de técnicas de xilogravura,
aqui no nosso
pobre e sofrido nordeste
brasileiro somente no século XX a literatura popular chegou alegremente
a suas feiras
e mercados, associada à gravura.
A técnica de xilogravura inicialmente
foi usada em rótulos
de garrafas de cachaça e folhinhas, só mais tarde passando
a ilustrar nossa literatura
popular ou
de cordel, assim
chamada devido
a forma como
os livretos eram expostos para
venda.
Os gravadores nordestinos com seus toscos instrumentos
de trabalho – formões,
goivas, canivetes
e outros materiais
improvisados para corte –
contribuíam para uma melhor
visualidade e beleza das histórias
impressas em tipografias
artesanais com
suas caixas
de tipos móveis
e prensas manuais.
Como
exercício de leitura de imagens, vamos usar o trabalho destes heróis
culturais da literatura de cordel
e suas dificuldades técnicas
na produção das xilogravuras
e gravações, já que
muitos jamais
frequentaram escolas, sendo autodidatas.
Na Figura
1 apresentamos uma cópia digital de uma chapa
xilográfica do gravador José Costa Leite,
nascido em Sapé,
Paraíba, em 1927. Este
artista, além de Poeta do Cordel,
é um dos maiores
e mais importantes
xilogravuristas do Brasil, tendo se iniciado
nesta arte muito
jovem. Já
expôs suas obras
em muitos
estados brasileiros
e no exterior, como
em Nova
York e Santiago no Chile.
Figura 1 - Cópia digital
de uma chapa xilográfica de José Costa Leite
Normalmente
os artistas desenham a obra a ser gravada e depois reproduzem, como
se refletidas em um
espelho, as imagens
na matriz a ser
usada como chapa
de gravação. Os artistas
primitivos em geral
concebem a imagem diretamente já espelhada na chapa ou matriz. Na Figura
2 apresentamos a chapa da Figura 1 espelhada digitalmente,
tal como
uma impressão xilográfica. Comparando as duas figuras
notamos que as iniciais
do gravador, JCL, estava inicialmente invertida na Figura
1, assim como
todo o motivo
artístico.
Figura 2 – Equivalente digital da impressão xilográfica da chapa
anterior.
Como
um exercício
visual deixamos para
os leitores comentarem as particularidades das imagens
apresentada nas figuras anteriores, bem como do diabo mostrado na Figura 3 que
foi impresso através
da xilogravura pelo mesmo gravador.
Figura 3 – Imagem de um diabo.
Falando em
arte popular, não
podemos também deixar
de mencionar as inscrições
rupestres deixadas em
diversas regiões brasileiras pelos primeiros
habitantes de nossa
terra.
Na Figura 4
apresentamos a figura 44 do livro Préhistoria
brasileira de Aníbal Mattos, Editora Brasiliana,
1939 e abaixo reproduzimos alguns trechos referentes a esta ilustração:
Na
serra de S. Thomé das Letras (Ayruoca) foram copiados, pela
Commissão Geológica de Minas os glyphos que
alli se encontram, e que tambem foram
estudados pelo eminente
historiador e geographo Barão Homem de Mello, (Fig. 44), que
assim a descreve:
“Copiei-a
eu mesmo,
linha por
linha, e, chegando ao Rio,
fil-a gravar pelo sr. Pinheiro, então
nosso primeiro
xylographo.
Quanto aos caracteres
traçados, vê-se em baixo
desenhado um quadrupede, talvez uma raposa,
no centro um
instrumento em
forma de pente,
na linha do alto
á esquerda, talvez
a figura rudimentar
de um quadrupede.
Os
outros caracteres
não apresentam forma
conhecida”.
Figura 4 – Fac-simile da figura 44 do livro
Préhistoria brasileira.
Este
interessante registro arqueológico e xilográfico
fica como um
segundo exercício
visual, onde
sugerimos a observação de alguma incoerência nas informações
apresentadas no livro de Aníbal
Mattos.
Na
segunda parte deste artigo
comentaremos as
sugestões aqui apresentadas
bem como a
gravura
de Picasso
que motivou esta
história toda.