Em três dias diferentes, três episódios
de verão. O começo foi no final de ano
ensolarado, novembro ou dezembro. Creio
que foi por aí. Depois breve encontro em
janeiro – na verdade nem encontro foi. Por
fim o Carnaval. Acho que foi assim, pelo
menos é o que lembro. Sempre quis
escrever sobre isto. Mas escrever o
quê? O fascínio da história e seu
mistério, ou seja, o que nunca soube, ou apenas imaginei, salvaria a minha
intenção. O resto? O resto apenas cenários mal iluminados, simples
arcabouços. No fundo parece ser assim
que funciona a ficção. De concreto
mesmo, sobraram apenas as palavras de minha avó: “fuja desta moça! Não deve ser boa bisca.”
Quando a conheci? Foi em frente daquele cinema que ficava na
esquina da Rua General Artigas com a Avenida Delfim Moreira, Leblon no Rio de
Janeiro. No final das sessões portas se
abriam de frente para a praia. Havia
também o Rian, na Avenida atlântica. O
Alvorada, na Raul Pompéia, era um espaço mínimo, poucas poltronas. Para chegar ao azul do mar podíamos caminhar
para Copacabana ou em direção a Ipanema.
Foi lá que assisti o Acossado. Mas nosso cinema, ou seja, o do encontro, não
é nenhum destes dois. Para quem conhece
ou não conhece o Rio, cinema Miramar
– já situa o ocorrido nos fundões do tempo.
O relato, portanto, se desenrola na década de setenta, pelo menos. Ou melhor, daí para trás, posto que este
cinema foi demolido em mil novecentos e setenta e três e inaugurado em mil
novecentos e cinquenta e um, como atesta a cópia do programa inaugural encontrado
enfiado num livro (V. Figura 1).
Tempos de ditadura. Seria uma informante? Afinal, tinha várias carteiras de identidade
com diferentes nomes. Para não falar nos
passaportes do Perú, Brasil e até um escrito em alemão. Lembro-me da tal de Maçã Dourada, que dedurava lá em São Paulo. Tudo era possível. Na minha Faculdade, nos corredores atuava Dona
Severina. Na portaria, o Mãozinha sempre
de olho, sempre esticando o dedo. Quando
não conseguiam nada, o que era comum, inventavam. Mas não acho isto não. Cheguei a suspeitar que fosse uma fugitiva de
alguma clínica para doentes mentais. Neste
caso a família deveria estar preocupada.
Por fim, concluí que qualquer jovem
perseguida, com problemas de apendicite, fugindo o tempo todo entre Lima, no
Perú, Rio e São Paulo, teria necessidade extrema de compartilhar seus dramas
com alguém de sua idade. Prefiro esta
versão, real ou não. De qualquer maneira,
o que importa? Escrevo sobre o que não
sei. Se não gostar, basta mudar o
rumo.
Pele muito branca, cabelos curtos,
pretos contrastantes. Parece que mancava
um pouco, mas disfarçava bem. Vestia-se
formalmente, parecendo até uma normalista: blusa engomada – mal se percebia os
cerzidos na gola –, saia na altura dos joelhos.
Deveria ter uns dezesseis ou dezessete anos. Disse chamar-se Sanney. Com dois enes. Isto tenho certeza.
“Nem sei o nome do meu pai. Não sei se está vivo ou morto. Nunca me disseram nada. Criança sempre escuta conversas e vai
compondo sua verdade. Para mim, um
criminoso de guerra, oficial da SS.
Daqueles com fardas negras e que enriqueceram com morte e pilhagem. Quando eu tinha uns sete anos sofremos sério
atentado em Lima. Fiquei uns três anos
sem poder andar. Acabei adotada por uma
família de São Paulo que enriqueceu do dia para a noite: mansão nos Jardins,
carros de luxo na garagem. Sempre
falavam que minha mãe viria me buscar.
Mas sempre soube que ela morreu no atentado. Era uma grande bailarina espanhola, do balé
clássico às danças folclóricas. Não me
lembro, mas acho que aprendi a cantar com ela.
Não sei de quem tenho mais medo.
Tanto os terroristas israelenses quanto os nazistas querem é o
dinheiro. Para isto matam qualquer
um. Tenho muita saudade do meu irmão
menor e dos passeios em carros esportivos.
O jeito foi fugir ao escutar que iam me matar quando completasse dezoito
anos. Parece que eu ia receber uma
herança. Estou hospedada na casa de um
advogado, velho amigo de minha mãe – assim me disseram – que prometeu ajudar. Conhece a Rua Sambaíba, no Alto Leblon? É lá que durmo.”
Saltou do carro, com os dedos nos
lábios pediu silêncio, abriu o portãozinho enferrujado, sumiu por escura
escadinha lateral. No matagal, outrora
jardim, estranho vulto parecia observar.
Não me preocupei – o zeloso advogado preocupado com a jovem a quem
prometeu ajudar.
Na descida, pela Timóteo da Costa, da
escuridão – não falei, mas era de noite – surgiu uma Kombi atravessada na rua. Só me lembro do motorista: barbudo, óculos
escuros. Quando vi o grupo armado de
porretes, dei ré e consegui passar pela calçada, espalhando latas de lixo por
todo lado. Depois soube que a casa
estava fechada há muito e que a escadinha dava para a rua de baixo.
Achei melhor esquecer o susto e não pensar
mais nisto.
Meados de janeiro o telefone tocou:
“consegui me operar do apendicite.
Passei mal na rua e acabei no hospital.
Levei material para curativos.
Ainda sinto dores. Vou desligar. Podem me localizar. Escutou os estalos? Estão na escuta.”
Logo depois, duas ou três semanas, sei
disto porque já era sábado de Carnaval: “em poucas horas parto para Lima. Onde estou?
Venha rápido. Já estão por
perto. Aqui na Rua do Lavradio...”
Última visão de Sanney, ou seja lá quem
era: sumindo na multidão, mesma blusinha cerzida, rosto pálido, tímido
aceno. Expressão de dor. Verdadeira nuvem de suor e odor de cachaça
envolvendo-a, protegendo-a, cantando: “Agora é cinza / Tudo acabado / E nada
mais...”
Ao lado, numa pequena confusão, a folia
continuava: “Eu fui à tourada de Madri / Parará tchim bum bum bum...” Era o sinistro barbudo arrastado pelo povo: “Eu
sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro, da cara de mau.”
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