Nestes últimos
feriados decidi afastar-me desta vida trepidante
no Rio de Janeiro. Em busca de refúgio, abri um enorme mapa do Brasil, ziguezagueando os olhos nesta procura. Acabei
atravessando a fronteira mineira, encantando-me com
os nomes das cidades
e povoados. Cada lugar era um convite: Borda da Mata, Dores de Campo,
Retiro da Onça,
Formiga, Sereno,
nomes que
soavam como apelo à preocupação
ambiental. Outros
apelavam para a poesia:
Estrela Dalva, Espera
Feliz, Monte
Sião e Mar de Espanha, para
não falar em Milho Verde, Luminárias,
Trinta Réis... Seria decisão difícil,
até surgir a pequenina Catas Altas da
Noruega, na região do ciclo do ouro
colonial.
Esta cidade
me lembrou uma velha
história familiar, de que a minha avó,
pelo lado paterno, teria ascendência germânica. Estudos genealógicos
desmentiram a versão, mas mostraram que
provavelmente seus ascendentes
vieram de Catas Altas
da Noruega, daí a confusão.
Os valentes
desbravadores portugueses e paulistas quando não
nomeavam um lugar
com o nome
de santo, batizavam-no com o nome de uma de suas
características. O termo
“Noruega”, portanto, nada tem a ver com os nórdicos
e sim com
o frio desta região. Nesta geografia
dos caçadores de ouro, uma encosta
meridional de montanha
que recebe pouco
sol, sendo muito
fria, é chamada de noruega. Monteiro Lobato, no conto
Velha Praga,
fala também
em “grota
noruega” como um
vale frio e pouco ensolarado.
Depois
destas digressões histórico-geográficas
iniciei a viagem para este
lugar de nome
tão singular. No caminho
ia refletindo que em
Minas até as doenças
graves eram de fácil cura, como, por
exemplo, aquela em
que uma criança
ficava “aguada” quando
lhe negavam guloseimas
e iguarias. O tratamento era
simples: bastava banquetear alguns dias
nas casas dos vizinhos e a criança se recuperava, para
o conforto dos pais. Por outro lado, havia os “gaveteiros”
que faziam suas refeições
em grande mesa
sem toalha,
qualquer paninho ou
louça, nada além do prato-feito e talheres. Assim que algum vizinho
anunciava: ô de casa,
pratos, garfos e facas eram guardados rapidamente em grandes
gavetas sob
a mesa; por milagre
aparecia um baralho, e a resposta era: senta cumpadre, vem jogar um
baralhinho... A turma
da Zona da Mata Mineira diz que
os gaveteiros são
de Divinópolis. Mas
certamente em
Divinópolis nomearão outra cidade. Mas o certo é que sempre encontramos em
velhas fazendas e casarões
mineiros aquelas mesas
típicas dos gaveteiros.
Por
distração ou manhas do destino, acabei entrando em uma estradinha desconhecida,
desviando-me do caminho traçado
anteriormente. Isto a apenas poucos quilômetros da lendária Catas
Altas da Noruega.
Catas Altas da
Noruega. Foto da página da cidade.
Em
um asfalto
impecável o carro
rodava, serpenteando entre verdes montanhas,
até atingir a
altitude de mais
de mil metros,
onde uma placa
avisava que estávamos no cume
da Serra do Espinhaço,
saindo do lado em
que as águas
alimentavam a bacia do Rio
São Francisco para
entrarmos no lado doce
da serra – a bacia
do Rio Doce. Mais
adiante, placas com
muito humor
alertavam: “Cuidado, Formigas na Pista”
e aí acabava o asfalto,
com o piso
agora feito
de pedras tipo
pé-de-moleque – era
um corredor
ecológico para
a passagem dos animais
nas zonas de matas
mais fechadas.
Depois
foi um desfile
de belas fazendas, todas restauradas com esmero,
nesta região de agricultura
e pecuária que
se desenvolveu para alimentar
os faiscadores de ouro da região
de Mariana e Ouro
Preto.
Este desfile
começou com a Fazenda
da Pedra, prosseguindo com a Santa Marina, do Tanque
e Fonte Limpa, terminando em Santana dos Montes. O casario da rua principal estava totalmente
restaurado, abençoado por sua Igreja
dominando a paisagem no ponto mais alto. No final de tantas surpresas,
recuperamos o fôlego tomando cafezinho com broa de milho no Casarão
dos Montes, onde todos se reuniam para uma prosa antes do anoitecer.
Como os antigos
tropeiros, pousamos na Santa Marina para
melhor explorar
a região. Lá conhecemos um
grande restaurador que, com sua esposa e filhas, deixou como
novas três fazendas
históricas, salvando também o casarão de uma quarta que, de tão
velho e abandonado, tinha
ruído. Cada pedra,
esteio, porta ou
janela foi numerada e tudo remontado
ao lado da primitiva
casa grande
da Fazenda Santa
Marina.
Foram dias
memoráveis nesta cidade, onde a História
parecia sair do passado
para nos
visitar. A preservação
ambiental é levada a sério e a cultura
local valorizada. Conhecemos também Cientistas
Sociais que
não só
estudam, como também
fazem a História, trabalhando em projetos de interesse comunitário, como
oficinas de luthiers e conjuntos de violas caipiras,
além das fazendeiras “encantadas”: havia aquela, com
sorriso bonito, olhos
expressivos, fala suave, que ia levando seu
rebanho para o mundo da poesia
e literatura, declamando: lá estava ela a olhar/ debruçada a janela.
Seus
olhos verdes
faziam par/ com o verde
das folhas das hortênsias... Outra tinha sido seduzida pelos lobos guarás, que
transformaram sua propriedade em verdadeira escola,
onde filhotes treinavam a arte
da caça devorando galinhas. Sempre
sorrindo, falava dos tatus que comiam suas
mandiocas e das saracuras
que usavam a horta para
banquetes.
Ao nos
despedirmos desta cidade, cruzamos com um violonista
itinerante que, com sua arte
musical, chegava aos lugares mais afastados e remotos,
tal um mariachi da vida rural brasileira. Levamos também
a terna lembrança
da senhora, moradora da praça principal de Santana dos Montes,
que acordava de madrugada, espiava pela
gelosia e, se tudo estivesse deserto e silencioso, girava a tramela e lá ia,
enrolada em um xale, apagar as luzes
da praça, contribuindo para
amenizar o uso
desenfreado dos recursos naturais. Afinal de contas, era
uma roça chique, uai.
Acabei não
conhecendo os perigosos e fatais golpes de ar das
gélidas montanhas mineiras da Noruega. Mas quem
sabe, outro dia...
Publicado
em maio de 2009 no Montbläat e no
livro