“Gosto mais é do amanhecer, mesmo
acordando com a visão da menina. A noite
é pior. Sempre mesmos sonhos. Ela caindo, a cara dentro do bebedouro, o
dedinho ainda pressionando, a água molhando seus cabelos. Depois vai escorregando, devagarinho, como
filme em câmera lenta, e cai no chão, tremendo com os olhos arregalados, até
ficar imóvel na poça de sangue. Pela
manhã, apenas seu sorriso. De uniforme, fitinha
no cabelo – o retrato nos jornais no dia do enterro. Matar criança não tem perdão. Nunca serei perdoado. É assim mesmo. Até mulher e filhos foram embora. Depois de doze anos de cadeia, ainda bem que sobrou
meu sítio neste buraco afastado. Senão
ia acabar aceitando a proposta para morar na Divineia e ser segurança daquele coronel
africano que veio para treinar traficantes. Na cadeia não foi nada fácil. No dia da chegada fui logo mostrando as
garras. Que líder coisa nenhuma. Cortei sua garganta, meti a cabeça na privada
imunda, arriei a calça enfiando-lhe um cabo de vassoura. Mesmo com essa cena horrorosa, ainda tive que
mandar mais dois engraçadinhos para o inferno até entenderem quem eu era. Meu pai sempre falava: é melhor fazer academia de polícia do que ir para as forças
armadas. Você vai ganhar o mesmo e não
tem que começar carreira nestes fins de mundo do Brasil, cheios de malária. Acabou dando nisto. O Major, que aprendeu a trabalhar comigo
quando era aspirante, rindo: segurança de
político? Nem pensar, você está mais do
que babado!”
“A caminhada matinal é o melhor do
dia. Tudo ainda escuro, sozinho, nem com
os santos podendo contar; apenas com o 38
enferrujado. Nem raias mais tem. O cano todo comido, tal minha vida. Mesmo assim, é a hora em que penso com mais
calma. Na época do frio é até
melhor. Depois aparecem as primeiras
casas, os moradores indo trabalhar: bom
dia, senhor Tenente. Não sei se é
por educação ou medo. Pego a van e vou pra luta.”
“Chego primeiro. Só arma barraca ambulante autorizado. O Major falou: todo dia quero doismilzinhos na mão.
A sobra é sua paga. Tenho que
ser duro, senão perco a moral. A turma
só respeita pancadaria. É assim a
vida. Tem dia que amoleço e tento ajudar. Aquele desgraçado teve coragem de armar
barraca fiado para pagar no final do mês.
Acabei deixando. Ele vendia frutas
no cruzamento perto da Cruz Vermelha, guardando a mercadoria nos gavetões
refrigerados, lá junto com defuntos.
Quando o Instituto Médico Legal mudou, acabou no hora veja.”
“Trabalho mais covarde é do
Sargento. Controla guardadores de carros. A firma ganha a concorrência e depois passa
pra ele administrar. Coloca um monte de
mendigos, pivetes e bêbados, correndo de um lado para outro por um trocado
qualquer, só pra cachaça ou crack. O lucro é grande.”
“Eu penando por aqui e o Coronel, já
aposentado, no conforto da varanda em seu sítio. Tem dia que penso em ir lá e acabar com
todos. Matar a família toda. Acabar até com o cachorro. O ódio é grande. No dia do acontecido, o desgraçado, com
sorriso zombeteiro, falou: trabalhou mal,
agora vai ter que pagar o pato sozinho. Afinal,
você era o comandante. Os soldados
apenas cumpriam ordem é isto que o inquérito vai concluir. A ideia era dar um susto no gerente do
tráfico. Na hora do recreio vocês davam
uns tiros, quebravam os vidros e furavam a caixa d’água pondo a criançada para
correr. Traficante também tem mulher
merendeira e filhos na escola. Se não
funcionasse, aí que íamos partir pra coisa pior. O que não podia era um moleque qualquer dizer
a um coronel que em ano de eleição não ia mandar nada pro batalhão, pois a
Secretaria já estava centralizando o pedágio.
Isto é o fim dos tempos.”
“As professoras saíram correndo,
chamando as crianças e, num segundo, tudo deserto. Com o pátio vazio, ia só furar o bebedouro. Mas a bobinha voltou correndo pra beber água
antes da aula. Puro azar. Um balaço na coluna. A imprensa toda com esta história de crime
hediondo.”
“Enquanto patrulho a praça fico
escutando as rezas vindas do Convento de São Francisco. Tenho vontade de ir lá, me ajoelhar. Pedir perdão.
Mas acho que não mereço não. No
máximo chego perto e fico escutando do lado de fora da porta.”
Oh Senhor, faze de mim
um instrumento da tua paz:
Onde há ódio, faze que
eu leve Amor;
Onde há ofensa, que eu
leve o Perdão;
Onde há discórdia, que
eu leve União;
Onde há dúvida, que eu
leve a Fé;
Onde há erro, que eu
leve a Verdade;
Onde há desespero, que
eu leve a Esperança;
Onde há tristeza, que eu
leve a Alegria;
Onde há trevas, que eu
leve a Luz.
“Hoje, sempre fico mais animado. É festa de São Francisco. A praça lotada, o povaréu indo rezar,
comprando mais, minha paga aumentando.”
A gritaria cortou a paz da manhã
festiva. O aleijadinho estava dando
banho no Sargento. Cobrava o dobro pelo
estacionamento. Embolsava o lucro todo. Miliciano não perdoa. Quebrou as muletas do infeliz e metia-lhe
pontapés.
“Covardia no dia do Santo? Nunca.
Empurrei o Sargento, livrando o menino todo ensanguentado.”
Como não se põe a mão em homem, a
resposta foi rápida. Em via pública, nada
de escândalos. Não usou a Mauser.
Preferiu a 22 que levava presa
na perna. Único e certeiro tiro na
artéria femoral – asséptico.
O Tenente, conhecedor de matar e morrer,
apertou o furo com os dedos, mesmo sabendo inútil. Cada um tem sua hora. Esta era a sua. Apenas alguns segundos. Nem tempo para rezar um pedacinho de
salverainha. Só admirar o céu.
O olhar passou pela silhueta de concreto
dos prédios, que emoldurava o azul celeste, pousou no Convento de São Francisco,
onde nunca entrara. O trânsito
parou. Ambulantes silenciaram. A ladainha do povo rezando:
Oh
Mestre, faze que eu procure menos
Ser
consolado do que consolar;
Ser
compreendido do que compreender;
Ser
amado do que amar.
Uns dizem que sorriu. Para outros, simplesmente o suspiro da morte
– a última golfada de ar abandonando os pulmões.
Mas fato é que todos viram alguma coisa durante
a reza final:
Porquanto
É
dando que se recebe;
É
perdoando que se é perdoado;
É
morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.
Era dia de São Francisco.
Dia de Governador, Prefeito,
Secretário rezar.
Cardeal abençoar.
Nota:
Oração,
São Francisco de Assis – Tradução de Manuel Bandeira. Antologia Poética, Henriqueta Lisboa,
Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro – 1961.