Bem cedinho – no inverno ainda escuro
– o Capitão Serafim rumava para Anchieta.
Partindo da Gávea cortava Botafogo, mergulhava no Túnel Santa Bárbara e
saía em domínios mais familiares, onde o reluzente Karmann Ghia rodava veloz e imponente, sempre atraindo os olhares
femininos, para grande satisfação de nosso herói. Quem sabe uma conquista matinal? Com as durezas da vida militar, o tempo era
sempre curto – melhor aproveitar as oportunidades.
Quando voltava para casa, guardava sua
preciosa viatura e parava para uma prosa com a rapaziada reunida na esquina:
Pô, hoje uma carreta virou em Parada de Lucas...
O Capitão era nosso vizinho de porta e
muito considerado por meu pai:
Um rapaz muito dedicado e estudioso. Pouco mais de vinte e cinco anos e já é
Capitão. Em breve será Major. Belo exemplo para nossa juventude.
Nesta tarde todos esperavam a chegada
do Capitão com certa preocupação:
Estava até roxo quando foi para o hospital. A espinha de peixe quase o matou!
Mas logo logo, o ronco do Karmann Ghia, e Serafim cercado pela
rapaziada para saber do acontecido:
Vocês nem imaginam.
Ontem Luiza preparou um peixe para o jantar e, enquanto servia, contava
os progressos de Lilica, filha de Dona Antônia:
“Lilica é uma menina muito inteligente. Uma das melhores alunas do Instituto de
Educação. Agora, Professora formada,
está dando aula em Anchieta.”
Eu já tinha dado uma garfada no peixe e quase
engasguei. Bem, em Anchieta tem duas
escolas. Poderia estar dando aula na
outra.
E Luiza continuava:
“Nos dias de chuva ela deixa os sapatos na casa da mãe de
um aluno e calça tamancos para caminhar no lamaçal que vai do ponto de ônibus
até a escola. Chegando lá, lava os pés e
pega um chinelo emprestado. Vida dura de
Professora!”
“Imagina como a garota é corajosa: não é que ela chamou na
escola um tal de Tigrão e falou que se continuasse espancando o filho, que é um
de seus alunos, iria dar parte na Delegacia?
O bandido ficou fininho, prometendo não mais bater no garoto.”
Eu suava frio, o peixe não descia. Mas o pior foi quando Luiza falou:
“A escola é tão longe que, atravessando uma pontezinha,
saímos do Estado da Guanabara e entramos em Olinda, Estado do Rio de Janeiro.”
Foi demais. A
espinha de peixe atravessou na garganta...
E agora, como posso visitar a Professora Claudete? Quem vai mandar os soldados pintarem a
escola? E as goteiras do telhado?
Após longas conversações os rapazes
acharam que o jeito era Serafim “dar assistência” às duas escolas para não dar
“na pinta”. Dizem que foi até
condecorado pela Secretária de Educação.
Pouco tempo depois veio o golpe de 64
e as últimas pungentes palavras do nobre Capitão:
Se não fosse a revolução, os de lá, da Rússia, comiam a
gente aqui.
Nunca mais vimos o Capitão Serafim. Mudou-se na calada da noite e em pouco tempo
virou Coronel.
Um dia meu pai, lendo uma notícia no jornal,
falou:
Aquele Capitão agora dirige uma agência federal de
torturadores. Foi condecorado por
relevantes serviços prestados.
Nunca me enganei tanto com uma pessoa.
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