Florença
é uma cidade de grandes
emoções, onde
o esplendor do patrimônio artístico e cultural permite que
o passado invada suavemente
o presente, mantendo vivas
algumas das ideias mais significativas
da humanidade. Florença é Giotto, Masaccio, Botticelli, o azul de Fra Angélico, a grandiosidade
de Michelangelo, a sabedoria de
Maquiavel, a poesia de Dante, bem como o espírito empreendedor
dos Médicis e de muitos outros que contribuíram
para a construção do pensamento renascentista,
criando uma nova consciência do próprio homem como centro e medida de todas as coisas. Para penetrarmos
na intimidade desta cidade, devemos ser cautelosos como Dante, conduzido pelas sábias mãos de Virgilio.
Devemos percorrer lentamente
suas ruas,
passear pelas margens
do rio Arno, apreciar a graciosidade da ponte
Vecchio, admirar a elegância e cortesia
de seu povo,
deliciar-nos com
a culinária Toscana e assim ir descobrindo, pouco a pouco, os escritos em
suas praças,
monumentos, palácios,
catedrais e dezenas
de museus.
Outra alternativa
para penetrarmos em
Florença é através de uma de suas portas
mágicas, como por
exemplo o afresco
da Trindade, pintado
por Masaccio por
volta de 1427, na paróquia
de Santa Maria Novella. Os Florentinos
desta época, não
acostumados com a sensação
de volume e tridimensionalidade
criada pela
perspectiva artística,
devem certamente ter ficado maravilhados
com o evento
divino representado neste afresco,
tão real como se estivesse acontecendo no
interior de um
nicho construído
na parede da capela paroquial. A pintura,
neste estilo artístico,
convida o espectador a participar
da própria cena,
lembrando-o de que a natureza não é simplesmente
para ser copiada ou temida, e sim
dominada pelo homem.
Este espírito humanista reflete-se em
vários aspectos
da cultura florentina,
sendo um de seus
exemplos mais
marcantes a catedral
e o domo de Santa Maria del Fiore, que se recorta amplo
e imponente no horizonte
da cidade, como
se estivesse cheio de ar, aparentando-se a um
gigantesco guarda-sol
aberto sobre
o coração de Florença, projetando sua sombra
protetora sobre uma comunidade
de indivíduos livres,
ao contrário das antigas catedrais medievais, onde
o homem era
reduzido a um mero
ser temente a
Deus.
A construção deste domo foi, antes de tudo,
uma façanha de engenharia
estrutural para a época,
mostrando como a tecnologia
pode ser impulsionada pelo
puro humanismo. Quando
contemplavam a catedral, com todas suas partes
em harmonia,
desde o campanário
de Giotto até o Domo de Brunelleschi, ou admiravam, a pouca
distância, o maior
de todos os cenários:
a Piazza della Signoria, o Palazzo Vecchio – sede
da municipalidade – e a loggia adjacente,
os florentinos devem ter se sentido, indubitavelmente, membros
de uma comunidade civilizada, onde a arte e a arquitetura refletiam as ideias e os objetivos da sociedade. Não se
pensava mais nas catedrais
e agulhas sobre-humanas que se projetavam cada
vez mais
alto para o céu, nem nos castelos
fortificados da nobreza medieval. No lugar
disto tudo, surge o simples espaço geométrico
da praça citadina: pórticos abertos para o sol e, para admiração de quem
passa, locais
para desfiles,
procissões, reuniões
e comemorações sociais.
O
desenvolvimento cultural de Florença
contou com um
grande aliado,
que foi o crescimento
econômico. Em meados do século
quinze, esta cidade possuía mais de duas centenas
de oficinas especializadas em lã,
fabricando também tecidos
de seda, brocados
de ouro e de prata,
damasquins, veludos, cetins e tafetás. A bela
Florença possuía ainda, segundo um
cronista da época, "trinta e três bancos sólidos, com balcão e tapete no exterior, que
efetuavam operações cambiais
e comerciais com
vários lugares
do mundo onde
circulava a riqueza". Florença permaneceu por
longo tempo
como a primeira
praça bancária
da Europa. Os símbolos
do poderio econômico foram imortalizados
em grandes
palácios e belas praças,
que hoje
podemos admirar como
se entrássemos em um
túnel do tempo. Os palácios
Davanzati, Médicis-Riccardi, Rucellai e Pitti, outrora
serviam de residência e escritório de ricos
mercadores e hoje
acolhem os visitantes para contar-lhes um pouco da história desta cidade.
A
nossa chegada
em Florença foi sutil
e cautelosa, mas
na partida usaremos os sólidos conhecimentos científicos
de navegação astronômica,
de conhecimento dos florentinos
há quase dois
séculos antes
das grandes viagens
portuguesas pelas costas africanas e das
precisas descrições feitas
por Américo Vespúcio das constelações estelares
observadas no hemisfério sul. O caminho
para este preciso retorno
encontramos registrado poeticamente, em terza rima,
nos versos
da Divina Comédia (*):
À
destra me
volvi, e, bem à frente
Do polo austral, fitei as quatro estrelas,
não vistas mais que da
primeva gente.
(Purg. I, 22/24)
Após olhá-las, procurando o lado
de
seu contrário polo, em cujo
teto
já não estava o
Carro, deslocado,
(Purg. I, 28/30)
Nestes
versos, Dante, ao emergir
das profundezas do inferno, viu o céu pontilhado de estrelas
e, de frente para
o polo austral, fitou o Cruzeiro do Sul (as quatro estrelas) e ao virar-se para
o seu polo contrário
(polo norte), já
em seu
retorno, observou que
a constelação da Ursa
Maior (O Carro)
já não
estava deslocada, ou seja, já começava a ser visível. Aqui homenageamos não
só a ciência
Florentina, como
também o conjunto
de conhecimentos que
culminaram com a descoberta oficial da América.
Como último adeus atravessaremos a Porta
Romana e subiremos até
a Praça Michelangelo, de onde teremos
uma incomparável vista
panorâmica de Florença. Exatamente
às doze horas assistiremos ao espetáculo ímpar, quando em todos os campanários os sinos
repicam, transmitindo-nos a certeza de
que, assim como
esta cidade Toscana soube integrar
seu patrimônio histórico e cultural à
vida moderna, com
grande atividade
econômica, universidades
e academias, ela
muito contribuirá para
as soluções dos problemas
que afligem a nossa
tão dilacerada humanidade
deste início de século.
Nota:
(*) Tradução de Cristiano Martins.
Foto T.Abritta.