No mapa esquemático abaixo, monstro o
roteiro de uma viagem que fiz em 1996 pela região mineira do ciclo do
ouro. Com o material recolhido nesta
andança por esburacadas estradinhas de terra, percorridas com um jipe 4x4,
escrevi vários textos – crônicas, contos e até poemas. Abaixo apresento uma destas crônicas publicada
no livro Memória, História e
Imaginação. Notem que as
companhias de mineração criaram verdadeiros impérios, interditando até
estradas, como comento as dificuldades que tive ao atravessar o trecho Caetés a
Barão de Cocais, tendo até que cortar correntes que impediam que porteiras
fossem abertas.
Viagem pelo Ciclo do Ouro de Minas Gerais
Minas tem mistérios. Talvez impenetráveis. Reside aí o fascínio. Assim pensava, olhar perdido, focado no
infinito. O sol forte. A sombra da Igrejinha
de Nossa Senhora do Ó como proteção.
Nome enigmático de santa. Mas
nesta verdadeira confraria de Ós espalhada por aí, não foi difícil descobrir
sua origem. Nasceu Nossa Senhora do
Parto, lá na antiga Toledo do século sete.
Nas liturgias, invocações exclamativas: O Sapientia, O Clavis David, O Emmanuel... Mas ao povo,
criatividade simplificadora. Até a
nobreza do Latim e alusões ao Antigo Testamento ignoradas. Tudo virou o simples Ó de invocação à Virgem. A Nossa Senhora do Ó. Pequena e majestosa, nos fundos de um largo
ladeiroso, riscado pela erosão das enxurradas, mas acolhida pelo adro de pedras
ladeadas por verde capim de perpétua esperança.
Misteriosa, olha-nos com sua fachada facetada. Porta central, ladeada por duas janelas
laterais. Encimada, no centro, pela
pequena torre do sino. Ode à
simplicidade arquitetônica. Uma
constante em outros povoados e vilas mineiras.
Teria algum significado? Nervuras e arcobotantes nas catedrais
medievais conspiravam para alçar às alturas dos céus, tentando reduzir o homem
diante do poder divino. O fausto e a riqueza
de algumas igrejas mineiras afugentariam os espíritos malignos das
montanhas. E a simplicidade destas
capelinhas? Só o vento pode
responder. Mas prefere trazer os sons de
sabor da vitória do Capitão-Mor Lucas Ribeiro.
À santa devia a vida. À santa
ergueu esta capelinha na Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de
Sabará.
No modesto púlpito, altar e coro
dourados, brilham os olhos de vidro da pequena santa. Assusto-me.
Parece falar alguma coisa: o
barrento Rio das Velhas já foi colorido de vermelho pelo sangue dos
antepassados de sua avó materna.
Escuto gritos, correrias. Sons de
morte. Uma velha fotografia. Longos, negros, lisos cabelos – o sangue
índio – formavam um grande coque.
“Saindo
de Caetés, que vem depois de Sabará, vá em frente, vire a direita perto do
jequitibá. Passando a venda do Seu
Aquino, quebre pra esquerda. Acolá, na
colina, vai avistar a torre de eletricidade.
Não para não. Vá direto. Quando passar pelo ferro velho do Seu Lito,
não para não. Vá direto. Na subida da serra tem uma porteira. Pode abrir que este negócio de propriedade
privada é mentira. É estrada
municipal. Depois de subir vá
descendo. Aí é a estrada que vai pros
lados de Barão de Cocais, caminho pro Caraça.
O problema é que a estrada vive mudando de lugar. Hoje passa ali, amanhã acolá. Corre risco de se perder. Hoje é domingo, tudo deserto. Quem vai corrigir o rumo? Se for, vá por sua conta e risco! Nós só podemos alertar.”
Estrada encantada? A curiosidade maior do que o desconfortável
mistério. Poderia ter me informado
melhor. Antes assim, pra não fazer
desfeita.
Quando começou a descida, um frio no
coração. O mundo era real, mas
aterrorizante. Até onde a vista alcançava,
única cor ferruginosa, quase negra.
Montes, apenas montes; atrás de cada monte mais montes plantados em meio
de infinito labirinto. O minério de
ferro pavimentava tudo. Todos os
caminhos exatamente iguais, sinuosos entre os montes de minério. Nenhuma referência.
Pequeno alento! Por perto chegava um trem. Apitos e trepidações cortaram o
silêncio. Apenas outra armadilha no
nosso desespero. A gigantesca esteira
despejava minério em cada vagão e o trem partia automaticamente apitando como um
ser vivo. Aqui prescindiam de operadores
humanos. Mundo apenas de máquinas.
Resolvemos seguir no sentido contrário
do movimento da pedraria que enchia os vagões.
Acabamos diante de um verdadeiro prédio que bufava, rangia para
alimentar a insaciável esteira. Contornamos
o monstro, buzinando, gritando, piscando faróis. Felizmente a máquina parou e falou por um
alto falante para aguardarmos à distância.
Foi uma alegria ver o jovem operário
pilotando a moto que saiu das entranhas da carapaça metálica:
“sorte
de ocês eu tá tirando atraso no serviço.
Pensei inté em almas penadas dos que ficam por aqui. Quando o soterrado é um avulso, tem
encarregado que vai logo gritando que não tem precisão de achar corpo. Os desalmados dizem que aço é ferro e carbono”.
Depois da curva, coroando as alturas,
o neogótico do Santuário do Caraça no vale escondido pela muralha de
montanhas. Um oásis na terra arrasada
por anos de mineração. Um estrondo de
trovão foi se afastando, quicando nas rochas entre nuvens, deu a volta no vale
e chegou novamente. Ensurdecedor. Emocionante saudação.
Após o jantar, vindos de diferentes
pontos do mundo, nos reunimos na varanda de pedra, olhos fixos na escadaria que
sumia pela noite. Um enorme focinho.
Olhar desconfiado, pernas compridas, docemente foi chegando e saindo com os nacos
de carne oferecidos pelos monges. O lobo
Guará. Criatura tão ameaçada, aqui
protegida. Na escuridão, apenas lamentos
destes sobreviventes da degradação ambiental.
De noite uma grande algazarra. Era um sonho quase real. Olhei pelas frestas da janela a tropa
chegando com mercadorias e notícias do Rio de Janeiro. Aqueles degraus dependurados na mata
magicamente agora estavam ligados ao velho trilho de chegada ao Santuário. Por ali, o pátio ia se enchendo de
animais. Na frente, a madrinha com a
cabeçada de prata, plumas e fitas, rebolando com nobreza, ampliando o som dos
guizos do peitoral. Ao seu lado, o
madrinheiro sorria contente com o sucesso da jornada. A rígida ordem na marcha de deslocamento da
tropa evaporou-se, fundindo em uma alegria única. Tudo misturado. Animais e homens, cargueiros e tropeiros,
burro culatreiro perdido entre o arreador e tocador. Luzes acendendo, pessoas saindo por todas as
portas.
Ao acordar, corri para o pátio e nada
vi. No café da manhã todos comentavam o
mesmo sonho.
E aqui voltamos A Palavra Minas:
Ninguém
sabe Minas. A pedra, o buriti, a
carranca, o nevoeiro, o raio. Selam a
verdade primeira, sepultada em eras geológicas de sonho. Só os mineiros sabem. E não dizem nem a si mesmos o irrevelável
segredo chamado Minas.
Glossário
Avulso: trabalhador informal,
sem registro profissional.
Madrinha: mula madrinha,
animal que liderava a tropa.
Madrinheiro: tropeiro
líder.
Culatreiro: animal que ia
em último lugar em uma tropa, na culatra.
Arreador: responsável
pelos arreios, indo atrás da tropa com os animais de reserva.
Tocador: tropeiros que
auxiliavam na condução da tropa.