Hoje o dia foi para despedidas. No almoço um tinto do Monte Nebo para
acompanhar a costela de carneiro. No
jantar, o vinho branco valorizava o peixe do Mar Vermelho, chegado há pouco do
porto de Aqaba.
Se Moisés bebeu deste vinho, os
conquistadores de Roma estocavam-no em tonéis guardados em grutas escavadas nas
rochas, esta seria a nossa bebida eleita. O vinho do Monte Nebo.
O Mar Morto, o Rio Jordão e Betânia já
ficavam para trás, nas profundezas daquela gigantesca fossa geológica.
Subíamos as montanhas e já cruzávamos
as escuras e desertas ruas de Mádaba. Em
menos de uma hora chegaríamos ao aeroporto de Amam para o voo desta madrugada.
No caminho, lembranças dos mapas
medievais em mosaicos que, na antiga Mádaba, orientavam os viajantes pela Terra
Santa. Lembrança também das multidões
que, em cada parada, num entra e sai dos ônibus, viajava pela estrada do
deserto em direção à Arábia Saudita rumo a Meca.
Crianças, jovens, velhos, homens e
mulheres, numa alegria que lembrava nossas romarias religiosas para Aparecida
ou Juazeiro de Padre Cícero.
A maioria dos peregrinos vinha da
própria Jordânia ou do Iraque. Da Síria
e outros países, a guerra dificultava, mas mesmo assim chegavam por rotas
alternativas passando pelo Líbano e entrando pela Palestina.
Carro
de combate. Amam, Jordânia. Foto T.Abritta, 2014.
Mas a
imagem que vimos quando chegamos a Amam não me saía da cabeça. Um carro de combate estava camuflado nos
jardins do hotel, mostrando que a guerra nos circundava naquela ilha de paz.
Os
acontecimentos no Natal de 1991 em Belém acabaram invadindo-me os pensamentos:
A tropa de ocupação proibiu a saída da
procissão. Um grupo de fanáticos
religiosos se reuniu no Túmulo de Raquel para hostilizar os cristãos – terrível
ironia em nome de um símbolo religioso do amor maternal.
Carros de combate, tropas de soldados
armados por todos os lados. Os
Palestinos, acuados, queriam apenas entrar na Igreja da Natividade nesta noite
de Natal, para rezar e libertar a procissão que sairia pelas ruas de Belém,
numa tradição já milenar.
Grades e barreiras bloqueavam a
passagem do povo.
A multidão batia com os sapatos nas
grades. Até a Cristina, revoltada,
correu, tirou um dos sapatos, aderindo ao protesto, sempre gritando o refrão:
‘This is a church, not a prison!’
Mas milagres acontecem. As portas foram abertas, e todos entraram
cantando junto com a procissão, que circulou, não sei como, no pequeno pátio
interno da igreja.
Os Palestinos, agora felizes, se
reuniram depois na
praça da Natividade, cantaram músicas populares e, em menos de uma hora, se
foram.
As luzes da praça apagadas, tudo
deserto.
A escuridão do medo.
Mas não foi o Natal mais triste da
minha vida graças ao jovem que na manhã seguinte nos esperava na porta do
hotel:
“Sou apenas um ‘peluqueiro’(*).
Gostaria de não ter sido um dos soldados
que estavam na porta da igreja. Entendo
um pouco de Português, meus pais são argentinos, mas nasci aqui. Estou muito envergonhado com esta ocupação.
Peço desculpas.
Quem sabe um dia isto tudo não acaba
bem?"
Chegamos ao aeroporto: voo noturno para Paris.
Notas:
(*) Cabeleireiro.
- Esta é a
terceira crônica sobre a Jordânia, escrita no final de maio de 2014, poucos dias
antes de explodir a extrema violência
no
Iraque e pouco depois na Palestina.
Ler também: