A aventura se iniciou em Helsinque, de onde
voamos para Murmansk, no extremo norte da Rússia. Em menos de uma hora o piloto anunciava que
atravessávamos o Círculo Ártico – latitude 66º 33’.
Entrando naquele remoto universo,
pensava nos antigos navegadores gregos que observaram, quando iam mais para o
norte, que os círculos dos anéis traçados pelas estrelas nos céus aumentavam de
raio e que elas traçavam suas órbitas em torno de um polo fixo. Notaram também que algumas estrelas eram
sempre visíveis em todas as estações do ano.
Assim, separaram estas, traçando uma linha imaginária paralela ao
equador terrestre passando pela constelação da Ursa Maior (1): Arktos.
Lembrei-me da solitária Estrela Polar:
Eu vi a estrela polar / Chorando em
cima do mar / Eu vi a estrela polar... / Estrelinha
franciscana / Teresinha, mariana / Perdida no Polo Norte / De toda a tristeza
humana.
Murmansk é uma verdadeira Stalingrado,
só que esquecida pela História nas geladas encostas árticas. Lá se travou uma das maiores batalhas da
Humanidade contra os nazistas.
Praticamente todos seus prédios foram destruídos, grande parte da
população morta em combate. Mas a rota
norte de abastecimento das tropas russas sempre aberta.
No mar, majestoso, o quebra-gelo Lênin. O primeiro movido a energia nuclear,
construído em 1959. Adiante, o Atom Flot – ultra secreto porto da frota
de quebra-gelos nucleares.
Embarcamos no 50 Let Propedy (“50 Anos da Vitória”) o mais moderno quebra-gelo, lançado
ao mar em 1993 e que integra a série Arktika
da Frota Atômica Russa.
Dos onze dias de viagem navegamos os
dois primeiros e os dois últimos sobre as águas. Nos outros, apenas o branco e azul da calota
polar.
A bordo as atividades eram variadas:
instruções de sobrevivência; treinamento de embarques e desembarques no
helicóptero e zodíacos sob diversas condições – chuva, neve ou vento; palestras
sobre Geologia, Geografia, História, Biologia e explorações no navio, visitando
suas entranhas: os dois reatores nucleares, geradores de eletricidade, placas
de dessalinização para produção de água doce – o gigante pode ficar até cinco anos
produzindo energia e leva provisões para cinco meses. A par destas atividades técnicas, muitos jantares,
vodca, festas e até churrascos nos decks
gelados e ventosos.
Cortando o inóspito Mar de Barent, ao
nos aproximarmos do arquipélago Terra de Franz Josef, com os primeiros blocos
de gelo que apareceram, um urso polar nadava – pequeno ponto branco em um mar
infinito. Ao chegar à calota polar,
afastou-se com ar desafiador: nada teme, honra seu nome, Ursus maritimus (V. Foto
1).
Muitas velas. Muitos remos. /
Âncora é outro falar... / Tempo que navegaremos / Não se
pode calcular. /... Curta vida. Longo mar. / Nem tormenta nem tormento / Nos
poderia parar... / Andamos entre água e vento / Procurando o Rei do Mar.
No
dia 12 de julho de 2012, a uma e trinta da madrugada ensolarada, o
Capitão do navio, Valentin Davydyants, anunciou: “O GPS marca 90 graus, zero minutos!
Missão final: Polo Norte.”
Desde 1977, quando o primeiro quebra-gelo
nuclear aqui aportou, este foi o nonagésimo segundo navio a chegar a esta
latitude extrema, com representantes de vinte quatro nações, vindos de todos os
continentes.
Missão de paz, mas também de defesa
deste ecossistema tão ameaçado.
Andar pela placa polar foi fascinante. Imenso mundo silencioso, movimentando-se,
dissolvendo em lagoas azuis e rachando perigosamente, mostrando as águas negras
de um Ártico com mais de quatro mil metros de profundidade (V. Fotos 2 e 3).
No decorrer do dia, muitos
fotografavam, tocavam o casco do navio ancorado no gelo, outros faziam medidas
tecno-científicas. Alguns tomavam vodca
e mergulhavam nas águas geladas, não se esquecendo da constante vigilância na
prevenção contra a aproximação dos ursos polares que com a diminuição do gelo,
migram cada vez mais para o norte.
Uma festa estava sendo preparada:
mesas, cadeiras, churrasqueiras, tudo sendo desembarcado pelos guindastes.
Mas a Natureza é imprevisível.
Ou quem sabe? Prefere sua quietude e solidão.
Forte estalo, pequeno movimento do
navio. Fendas começaram a abrir. O negro das profundezas. Todos para bordo. Tudo recolhido, partimos para a única direção
possível a partir do Polo Norte: Sul.
Na volta, explorações em zodíacos, sobrevoos
de helicóptero (V. Figura 4), desembarques em ilhas, visitas a antigas estações científicas
abandonadas e o forte vento gelado do Mar de Barent.
No longo voo de retorno pensava na
diminuição da calota polar, tanto em extensão quanto em espessura – média de menos
de um metro e meio no verão (2).
Pensava na diminuição das geleiras na Antártica, Groenlândia, Alpes,
Himalaia... E o capitalismo selvagem
poluindo e destruindo nossa frágil Natureza.
Para me confortar, apenas um poema Inuit registrado há mais de um século no
extremo norte da Groenlândia e que fala da esperança, das cores pintadas no céu
a cada renascer do sol (3):
Só
existe uma grande Verdade / A única Verdade / Viver / Ver / Nas caçadas, nas jornadas
/ O grande dia que renasce / A luz que inunda o mundo.